FERNANDO PESSOA E SEU CONTEXTO HISTÓRICO
Por Leon Cardoso da Silva
O início do século XX foi marcado por grandes transformações sociais, políticas e literárias. Na noite de 3 para 4 de outubro de 1910 diversas forças militares e civis portuguesas se rebelam contra a monarquia. Após muitos combates estas forças saem vitoriosas e dois dias depois proclamam a Primeira República portuguesa. Isso resultou na “construção” ou fortalecimento de um clima de profundo nacionalismo e de rupturas que vinham ocorrendo em Portugal, sobretudo, no século XIX quando parte da população almejava uma mudança de regime político. Assim, Portugal no início do século XX foi marcado por intensas turbulências políticas que impactaram a sociedade e influenciaram diversas manifestações artísticas e literárias.
Em 1914 a Europa e o mundo ficaram abalados por causa da deflagração da Primeira Guerra Mundial. Mais precisamente em 4 de agosto, deste mesmo ano, chega a Portugal a notícia da declaração de guerra da Inglaterra à Alemanha devido esta última violar o tratado de 1831 que declarava a Bélgica como território neutro naquela região. Entretanto, Portugal só entra de fato na guerra em 1917 quando no dia 2 de fevereiro suas tropas chegam a Brest, porto da Bretanha, rumo à frente de batalha na Flandres francesa.
O modernismo em Portugal teve início em 1915 quando veio a lume uma importante revista que criou um cenário novo e polêmico nas letras portuguesas. Intitulada como Orpheu esta revista – embora de curta duração, pois como se sabe foram produzidas apenas duas edições – tinha como principal objetivo, além de oferecer uma alternativa econômica mais acessível para os leitores, pois, os livros eram praticamente artigos de luxo pela questão do custo financeiro, a revista buscava realizar certas rupturas com temas da tradição literária. Inevitavelmente, com características inovadoras o modernismo português movia-se entre herança e memória, inovação e ruptura. Daí resulta o fato da revista ter sido combatida por alguns intelectuais, uma vez que, numa perspectiva moderna de inovações, apresentava alguns conteúdos incompatíveis com a cultura que vigorava no país conservador.
Foi exatamente neste contexto sócio histórico que Portugal viu surgir Fernando Pessoa, o poeta português mais festejado desde Camões e um dos maiores de todos os tempos.
No que diz respeito ao aspecto biográfico podemos dizer que Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 13 de Julho de 1888. Aos cinco anos de idade ficou órfão de pai e, dois anos depois, viajou para Durban, na África do Sul após sua mãe casar-se pela segunda vez. Este fato é bastante relevante porque ainda na África, em 1901, Fernando Pessoa escreve seu primeiro poema em Inglês, língua a qual lhe rendeu prêmios durante o período em que estudou em colégios de freiras e em Durban High School, recebendo educação inglesa. E essa influência da língua inglesa foi tão intensa que, entre 1902 e 1908, Pessoa compunha seus versos e prosas somente nesta língua – só a partir dos 20 anos de idade é que passou a escrever em sua língua materna.
Em 1915, liderou um grupo de jovens escritores – Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros, Luís de Montalvor e o escritor brasileiro Ronald de Carvalho – e fundou a revista Orpheu, aqui já mencionada. É bastante interessante observarmos a relevância das revistas para o contexto literário português daquele período porque ficou bastante comum a definição de duas vertentes do modernismo português a partir de duas grandes revistas: a Orpheu e a Presença.
À medida que a Orpheu privilegiava as ideias de renovação futurista e de liberdade de expressão e criação literária, a Presença posteriormente buscou aprofundar estas perspectivas, mas com grande influência da psicanálise freudiana ao difundir a valorização de aspectos psicológicos, intuitivos e de criatividade individual. Com outro olhar, podemos entender que estas revistas eram vitrines, pois o público leitor além de ter mais facilidade de acesso econômico a outro meio de divulgação literário, serviram também para a divulgação de textos e manifestações artísticas diversas, fato este que fortaleceu e difundiu muitos movimentos de vanguarda.
Na Orpheu, por exemplo, Pessoa publicou os poemas “Ode Triunfal” e “Opiário”, ambos assinados por seu heterônimo Álvaro de Campos, e escandalizaram a sociedade conservadora. Isso fez com que reações críticas violentas apontassem os autores desta revista como “loucos” e “insanos”. Entretanto, isso não foi uma exclusividade de Portugal, pois em outros países as mesmas rupturas que outros escritores modernos propuseram também foram recebidas com reações semelhantes.
Posto isso, já não é difícil de compreendermos como ocorreu a influência entre Fernando Pessoa e seu contexto histórico. Assim como outros escritores, Pessoa foi influenciado por inúmeros aspectos contextuais e universais, tendo este último como conhecimento literário e desenvolvimento criativo individual do próprio autor ou do próprio fazer criativo que é característico de cada escritor ou obra específica com a prerrogativa de estarem dentro de um contexto histórico-literário.
Não podemos esquecer que a Orpheu veio a lume em 1915, portanto, em meio a sangrentos conflitos da segunda guerra mundial. Não era de surpreender que justamente nesta revista Pessoa tenha publicado dois poemas de seu heterônimo Álvaro de Campos em sua fase mais pessimista. No poema “Ode triunfal” podemos observar os seguintes versos:
(...)
Olá anúncios elétricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
(...)
“Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos / Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos”. Diante de uma modernidade que busca avançar para o progresso há um pessimismo dos sujeitos portugueses ante a iminente participação do país nos conflitos armados da guerra. Este paradoxo que sai dos versos de um heterônimo e envolve diretamente o escritor autor em sua própria pessoa, em sua própria visão de mundo confunde-o com sua criação, personagem que o imita ou que é imitado por ele.
Já em o “Opiário”:
(...)
É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
(...)
“É antes do ópio que a minh'alma é doente. / Sentir a vida convalesce e estiola”. Neste poema, o autor propõe uma fuga da realidade. Um tipo de busca por uma realidade artificial que supere o risco e a vacuidade existencial, “Por isso eu tomo ópio. / É um remédio / Sou um convalescente do Momento. / Moro no rés-do-chão do pensamento / E ver passar a Vida faz-me tédio”. Em alguns momentos talvez isto se confunda com o próprio Pessoa, ortônimo.
Entre outras características, este poema aborda também um tema bastante específico do contexto social português do início do século XX. “Volto à Europa descontente, e em sortes / De vir a ser um poeta sonambólico. / Eu sou monárquico, mas não católico / E gostava de ser as coisas fortes”. Pessoa foi um crítico da I República. Esta se tornou muito violenta e isso deu margem para o golpe que, realizado em 1926, havia feito duas promessas: a de justamente acabar com a violência na república e dar início a ações para criar uma “nova dignidade constitucional”. Fato este que fez com que nosso poeta apoiasse o golpe, mas este o frustrou por não realizar a segunda promessa.
Após esta breve leitura podemos entender que Pessoa não foi autor somente de muitos poemas relevantes – o que já o tornaria grande dentro da literatura e da cultura portuguesa. Foi antes autor de um extenso e coerente projeto literário. Disso surge a sua principal criação literária: seus heterônimos. Cada heterônimo por si próprio representa uma faceta distinta de um mesmo autor. Mas não simplesmente faces diversas, mas faces que se moldam para em conjunto formar um todo coerente e pensado nos seus pormenores.
Assim, surgiram os heterônimos: Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, cada um com sua história e estilo próprio. Diante de cada tendência literária específica Pessoa produz assumindo as identidades de seus heterônimos. Com isso, surge a compreensão de que o poeta português foi autor de um imenso e relevante projeto literário coerente.
Em vida, Pessoa deixou um livro publicado “Mensagem”. Foi uma obra que ele escreveu como ele mesmo (ortônimo) assumindo em seu nome a autoria dos poemas. Costuma-se classificar este livro a partir de duas perspectivas distintas, mas não antagônicas: a lírica e a saudosista-nacionalista.
No que diz respeito à lírica, diversos são os poemas que seguem nesta linha. No poema “Mar português” o poeta escreve: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas / mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / (...) Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena. / Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor”. (...) O mar representa as conquistas e as vitórias portuguesas embora esta tenha ocorrido em meio ao sofrimento dos navegadores e de suas famílias que ficaram olhando a imensidão do mar, na espera ansiosa do regresso. Bojador era o nome dado a uma região que fica no Marrocos, que nas grandes navegações ficou conhecido como Cabo do Medo devido ao fato de muitas embarcações não conseguirem ultrapassar. Noutra perspectiva, podemos dizer que de acordo com o poema devemos ultrapassar nossos medos e dores para realizarmos nossas conquistas e realizações.
Com relação ao aspecto saudosista-nacionalista, não é difícil de compreendermos que seus primórdios conceituais surgem com a própria perspectiva modernista. Embora o modernismo português tenha se voltado para características mais abrangentes da Europa, a própria ideia modernista já é por si de valorização do ideal de nacionalidade.
No poema QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL o poeta faz uma homenagem saudosa e nacionalista a D. Sebastião, último rei da dinastia Avis que tinha o sonho de conquistar Jerusalém para o catolicismo. Sabe-se que este rei sumiu após intensas batalhas para conseguir seus objetivos. Após um terço do exército português ser destruído, procurou-se o rei e este não foi encontrado. A este desejo de conquista, Pessoa se questiona: D. Sebastião queria grandeza? Ele seria um “louco” ou um sonhador? À primeira questão, nosso poeta português responderia pela afirmativa, a segunda diria facilmente que D. Sebastião era um sonhador. Se, por exemplo, substituirmos as palavras “louco” no primeiro verso da primeira estrofe por “sonho” ou “sonhador” podemos perceber mais diretamente este aspecto de homenagem e saudosismo.
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Mas a loucura ainda assim aqui é vista de forma positiva pelo poeta. Ora, “sem a loucura” o homem poderia ser classificado como um “cadáver adiado que procria”. Isso divide o poema em duas partes, exatamente como estão postas as estrofes seguidas de versos irregulares com rimas ricas e pobres predominando o ritmo binário com rimas cruzadas e emparelhadas. Na primeira estrofe o sujeito se caracteriza como louco que de tão certo a própria certeza não lhe cabe. Na segunda estrofe, o poeta faz uma espécie de divulgação e valorização da loucura a ponto de afirmar que outros a tomem e deem continuidade aos seus anseios de conquista e de grandeza. Outros poemas se seguem neste mesmo tom apontando para aspectos de valorização da identidade nacional portuguesa.
Postumamente os poemas de Pessoa (ortônimo) foram reunidos e publicados em diversas coletâneas. Dentre os que se destacam está um bastante significativo intitulado como “Autopsicografia” onde trata do fazer poético e da verdadeira intenção do poeta.
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
Nesta primeira estrofe, o poeta apresente a ideia fundamental do poema, quando, usando uma metáfora, classifica o poeta como fingidor “O poeta é um fingidor”. Obviamente isso não quer dizer que ele seja um mentiroso “finge tão completamente”, mas que consegue se colocar no lugar do outro “que chega a fingir que é dor” e reproduzir para este os sentimentos que ele capta “a dor que deveras sente”, embora ele, o poeta, não necessariamente esteja sentindo no momento em que produz o poema.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm
ISBN | 978-85-923110-6-3 |
Número de páginas | 212 |
Edição | 1 (2018) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura c/ orelha |
Coloração | Preto e branco |
Tipo de papel | Offset 75g |
Idioma | Português |
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