O indigesto paladar do silêncio na construção supra real do afeto
“Existe é homem humano. Travessia.”
João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.
O tempo tem o seu quaradouro de lágrimas. Vertido em uma sucessiva e trágica tristeza. Chora-se muito. Por tudo o quanto se pensa sonhar, há um choro escondido. Incomoda. Tem iluminadura de precipício. É ruidoso. Assusta. Causa embrulho no ser. Atravessa a vida igual morcegos em voos noturnos sobre um solitário trapiche. Tem intimidade de sol entrando em um jardim. Não nutre qualquer generosidade. Quando não se chora, se ressente do chorar. E o embargar da voz na garganta causa mais estranheza e dor.
Tal qual o tempo, o silêncio se mostra atendo à nossa leitura de vida. Embora seja um ótimo conselheiro, pelas coisas que ficam suspensas, pelo que se interdita no acrisolar das horas, é dado a responder com mágoas as nossas angústias. O Rei Lear, já farto de idade e acostumado às des_costuras do existir, por certo muito chorou e teve, tomando as devidas proporções, longos períodos de silêncio. Contudo, em sua trágica velhice, o soberano se viu sozinho. Marcado por uma intransigente solidão que o cortava a alma.
Com um olhar atento e experiente. Que lambia as barras do horizonte, de tão comprido. Em um longo e des_confortante momento olhou, demoradamente, o tempo. Viu o rei que, além dos fossos que o circundava, um assombro de solidão lhe amealhava a alma. Estava velho, o soberano. Mais velho do que podia suportar. Seus dias eram pregados de canseiras e enfado. Nada havia que o contentava. A coroa sobre a sua cabeça tinha o peso de uma noite de intenso temporal. Pesava-lhe os dias. O anel. O manto. O cetro.
No alto do trono bretão, o monarca parecia uma flor murcha, lançada em um monturo qualquer. Sem viço. Sem cheiro. Sem brilho. A sua vida cheirava a morte. Suas feições tinha um empalidecer de defunto à espera do enterro. O reino dava passos largos rumo a um vazio de vida e uma escuridão de existir. Das três herdeiras, duas viviam envoltas a conchavos e conspirações. Sem qualquer apego ao afeto. A terceira, Cordélia, por conhecer de perto as agruras do velho Rei, pouco aspirava a si. Estar com lhe bastava.
A sucessão da coroa era um fardo pesado ao grande e idoso Rei. As duas herdeiras mais velhas sabiam desta indecisão. Auspiciosamente se desdobravam de falso mimo. Era pouco ao sábio monarca. E ele conhecia bem destas intenções. Mas isto o massageava a alma. Era tudo o que queria em seu tempo de solidão. A terceira herdeira nada falou. O indigesto paladar do seu silêncio lhe pareceu amargo. A construção supra real deste afeto se estampou ao soberano em forma de estorvo. A embófia o tomou por morada.
Como seres existenciais, somos seres de escolhas. Mesmo o não escolher é uma atitude de escolha que provoca consequências. Cordélia escolheu não falar. Fez a escolha pelo mutismo. Compreendia sua história e o contexto vivenciado. O afeto atravessava o seu existir em uma afetividade de ser. Feito o voo das araras, riscando o céu pelo entardecer. Foi uma difícil escolha escolher não falar. Estar em condição de mudez. Em abertura as suas compreensões de vida. Em uma construção supra real do afeto no existir-existindo.
Isto a tornava singular e potencialmente perigosa. Tanto aos olhos do grande Rei, pelo estado de emudecimento voluntário, quanto aos olhos das duas outras herdeiras, pela autenticidade no afeto que nutria por seu pai. Esta era a sua travessia. Seu caminho de encontro. Expressão de afeto. A sua singularização perpassava o seu ser. Pagou o preço do zelo. Do cuidado. Do amor que nutria ao seu pai e Rei. Em um tempo que tudo se configurava interesse, Cordélia teve a ousadia de se assumir demasiadamente humana.
Tornara-se maior que o rei. Reinventou-se em pessoa melhor. Fez-se pintura em dias de extremada escuridão. Um ser ontológico, afetivo e factual. Em estreita relação com o tempo e o silêncio. Em convivência próxima ao afeto. Preservando o vínculo com o Rei. Propondo-se a existir sua existência com um olhar solene de filha ante a representação compassiva e servil do pai. Doando-se à inospitalidade da vida em uma sublimação semântica de existência. Tomando para si a compreensão mundana do existir-existindo.
O Rei se fez homem. Nesta transcendência não se guardou do ser. Sua ubiquidade cessou. Por mais agradável fosse o cuidado de sua terceira filha, o seu mutismo o incomodava. Ao silenciar sua voz, Cordélia se fez chumbo. Aos olhos do monarca a sua alma adquiriu coloração acinzentada. Sua presença se tornou odiosa. Havia pouco sonido em seus atos. Aos poucos, da vida se extraiu a morte. Ao Rei o seu afeto se fez frio, distante e indesejado. Servido indignamente em prato raso no grande banquete real.
A inserção indigesta do silêncio na transferencialidade do ser, fez do Rei uma figuração de morte. Envelhecido. Impiedoso. Vulnerável. Merecedor de compaixão. Estava nu diante de seus súditos. Sem qualquer segredo, virtude ou pudor. Sem governo sobre si e sobre os seus. Por fim, o manto do tempo o cobriu de ultrajes. Os ribombos do escárnio romperam as muralhas do reino. Confuso e arrependido tomou sobre si os trajes da loucura. Em sua mudez, Cordélia vertia lágrimas. Enfim, seu afeto vencia o rancor real.
Na temporalidade das coisas e dos seres, era tarde. Muito tarde. A dimensão do afeto de Cordélia, em sua relevância de silêncio, já não comportava vida. A mudez é perigosa. Diz coisas sem dizê-las constrói dúvidas. Consagra a interlocução do não-dito ante o dito. Enfatiza configurações à linguagem que requer cuidado. Transpõe a compreensão rasa do entendimento humano fugaz. Cultiva conteúdos latentes que o dito não pode antever. Reside aí o perigo. Disto sabia Cordélia. E em morte, o Rei teve de aprender.
Em sua terminança de ser, quando sua vontade e poder real já não alcançava qualquer vento, não evidenciava voz de comando a si ou aos outros, o Rei se fez homem em grandeza de homem. Clivado pela morte de Cordélia e, indubitavelmente amargurado, encontrou em sua própria mudez, o seu mais prazeroso e indistinto chão. Reino que o acolheu sem quaisquer resistências. E na dimensão do silêncio amortalhou os seus sonhos de rei, construindo no indigesto paladar do silêncio, sua morada de afeto eternal.
Ao afirmar sua anulação de sujeito, em sua última consumação de ser, o Rei demandou suas figurações de silêncio em uma dimensão de amor à efêmera mudez de Cordélia. E o tempo, sempiterno, imanente e imorredouro, promoveu o seu fechamento de ser. Prescrevendo, extemporânea, a construção do afeto em uma simbolização de amor atemporal. E acolhido por uma silenciosa subjetividade, a interpretação do grito silencioso de Cordélia nos vem em uma investidura ensurdecedora de afetação humana.
Que sejamos reis ou súditos, cavaleiros, escudeiros ou bobos da corte, que tenhamos séquitos ou andemos sós, o gozo da vida requer contemplação e silêncio. A nossa dimensão de ser é notoriamente marcada pela alteridade do ouvir. O esvaziamento de si e do outro, dado pela fala, tem no emudecimento do dito, a experienciação do dizer do não-dito. E que ocupa um lugar de suma importância na revelação expressiva dos afetos. Seja gerando nossas próprias inquietudes ou na encenação prescritiva do olhar.
Com suas nuances reveladoras, o silêncio é repleto de significado. Traz-nos enigmas e discursos ambíguos. A significância do silêncio, em contextos distintos, tem difícil leitura. Entender o silêncio é para poucos. Em seu leito de morte, Rei Lear se encorajou a entendê-lo. A cada dia somos pautados pelo silêncio. Que ocupa o lugar de frente em nosso existir. Por mais ruidosos sejam os dias, há sempre uma Cordélia a nos anunciar, em mudez de fala, de escrita ou de desenhos, a construção supra-real dos nossos afetos.
Alufa-Licuta Oxoronga
Psicólogo e Escritor
ISBN | 978-1983894329 |
Número de páginas | 109 |
Edição | 1 (2018) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura c/ orelha |
Coloração | Preto e branco |
Tipo de papel | Offset 75g |
Idioma | Português |
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