MARCAS DO CAMINHO: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E A NOVA POESIA BRASILEIRA
(Autor: Leon Cardoso da Silva )
BREVE INTRODUÇÃO PARA INÍCIO DE CONVERSA
Antes de qualquer coisa, quando se trata de literatura – no que diz respeito à criação artística –, devemos entender que não há movimento absolutamente globalizante. O que há é a predominância de temas específicos em determinados períodos e envolvendo, por sua vez, um maior número de escritores e artistas. É neste ponto que surgem categorias conceituais, necessárias para a compreensão histórica dessa área em particular. Conceitos como: Barroco, Arcadismo, Romantismo, Simbolismo, e assim por diante, permitem-nos entender que toda classificação literária ou análise de produções artísticas deve passar por um processo de interpretação envolvendo algo mais que o autor e sua obra.
Mas pode questionar o mais crítico dos leitores: como isso pode nos fazer entender autores, por exemplo, como Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, intensamente ligados às questões mais relevantes de seu tempo? É este o ponto precípuo de nossa reflexão. Mas chegar à resposta sem percorrermos todas as curvas do caminho dificultará a compreensão do todo. Isso porque Drummond e Pessoa não foram simplesmente escritores de profundidades universais carregadas de rebeldias e calmarias íntimas. Pertenceram, também, ao movimento mais radical e mais impactante da história da literatura, o Modernismo.
Neste sentido, o que foi mencionado no primeiro parágrafo – acerca do processo para definição das tipificações conceituais utilizadas pela nossa historiografia literária – pode ser compreendido pela confluência do número bastante distinto e significativo de escritores de um determinado período. Isso quer dizer que o movimento modernista foi tão intenso em promover liberdade de criação literária que, com o tempo, diversos movimentos coexistiram levando a literatura e sua crítica para uma diversidade estética nunca antes vista em nossas letras. É neste contexto de distinções e novidades que Carlos Drummond de Andrade convive e deixa, para a humanidade, sua contribuição em forma de literatura.
Tudo isso justifica, portanto, o fato de fazermos uma análise sobre a produção de Drummond e dos solavancos do modernismo primeiro estabelecendo a prioridade de um método de estudo – um caminho a ser percorrido –, segundo realizando uma reflexão sobre o alcance e a confluência de todo um processo (criação artística) e sua culminância no objeto literário (a obra). Assim, o período histórico-literário e social, a vida e a obra de Drummond, que é um dos maiores escritores da literatura, será o nosso objeto de estudo.
CONTEXTO LITERÁRIO
Resumidamente, poderíamos dizer que literatura é a “arte do uso da palavra”, que estudarmos sua história é o mesmo que desbravarmos o pensamento humano e entendermos sua mudança ao longo do tempo. Além disso, está repleta de aspectos culturais e linguísticos com muitas marcas tanto do autor, quanto de elementos particulares moldados por um período ou um contexto histórico. Sendo assim, seria inevitável não percebermos que rupturas constantes também fazem parte do mundo literário.
E é nesta perspectiva de ruptura e inovação que em 1922, culminando com o centenário de nossa independência, ocorre o período de maior mudança na literatura. Na verdade, este é um ano bastante simbólico, pois foi nele que ocorreu a Semana de Arte Moderna oficializando propostas radicais no que se entendia como concepção estética. Antes, por exemplo, os autores seguiam uma determinada concepção do fazer literário, e isso em conjunto fez com que os movimentos fossem mais facilmente definidos pelo conjunto de autores que tratavam determinados temas de forma semelhante.
O que ocorreu com o modernismo? Dissipou um pouco essa unidade ao promover, entre outras coisas, certa liberdade de criação artística. Isso quer dizer que os autores modernos puderam criar sua própria estética e com isso moldar uma nova forma de criação literária. E isso é tão intenso que nossa crítica literária atual tem dificuldade de estabelecer um conceito ou um nome, ainda menos algum marco histórico, para o que se faz hoje em literatura. Certamente estamos num pós-modernismo ainda em construção carecendo do olhar que ainda vai se delinear no futuro, quando quem olhar para nós juntar, com mais autonomia, as peças do quebra-cabeça.
Divagações à parte, observamos que antes mesmo da semana que inaugurou o modernismo no Brasil já circulavam publicações de artigos polêmicos, exposições de pintores expressionistas e diversas obras renovadoras que, por sua vez, iam de encontro a toda uma tradição literária. Em 1917, houve a exposição de Anita Malfatti com inovações artísticas tão intensas a ponto de inquietar o já conhecido Monteiro Lobato que reagiu escrevendo o artigo bastante duro intitulado “Paranoia ou Mistificação?” onde critica veementemente as inovações artísticas praticadas pela respectiva pintora. Em 1920 e 1921, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia fudam a revista “Papel e Tinta”, Graça Aranha publica o ensaio “Estética da Vida”, Oswald de Andrade publica “Meu Poeta Futurista” e Mário de Andrade publica “Mestres do Passado”, todas estas contribuições traziam propostas inovadoras que culminaram na Semana de Arte Moderna no ano seguinte.
Nasce o poeta
Como sabemos, Drummond nasceu em 31 de outubro de 1902, no município de Itabira, Minas Gerais. Assim, quando a Semana de Arte Moderna foi realizada em São Paulo, em fevereiro de 1922, nosso poeta contava alguns meses para completar seus 20 anos de idade. Acontece que isso não quer dizer que ele esteve alheio às propostas modernistas. Em 1920, Drummond residindo em Belo Horizonte, após passar um período no Rio de Janeiro, começa a se relacionar com jovens escritores e conhece mais intensamente as ideias de liberdade artística proposta pela nova literatura e publica sua primeira crítica no Jornal de Minas. Em 1924 conheceu Mário de Andrade.
Então, já podemos tirar uma primeira conclusão, a de que Drummond, antes da Semana de Arte Moderna já começava a ensaiar uma nova postura, ainda que imatura de um jovem recém ingresso no mundo das letras – havia publicado crítica, crônicas e outros textos em jornais de baixa circulação até conseguir emprego no Diário de Minas, permanecendo nele por dez anos. Neste sentido, o poeta mineiro dava seus primeiros passos no terreno do modernismo, mas sua maior presença foi reservada para a segunda fase desse movimento.
Mas como podemos conceituar o que seja modernismo e como enquadrar Drummond dentro deste movimento?
Modernismo, como já foi explicitado, foi um movimento literário e artístico que surgiu na primeira metade do século XX. Seu maior impacto foi o de promover rupturas e inovações até antes não permitidas pela elite intelectual. Isso quer dizer que antes do modernismo havia a predominância da estética realista/parnasiana com alguns resquícios do simbolismo – em alguns casos –, sobretudo na poesia.
Características do Parnasianismo:
• Versos regulares e o gosto pelo soneto e pelo decassílabo;
• Universalismo (alguma exceção para Olavo Bilac);
• Objetivismo;
• A arte pela arte;
• Apego a tradição clássica;
• Valorização da linguagem formal;
• Obediência a um padrão estético.
Como ruptura, os escritores modernos priorizavam:
• Verso livre;
• Nacionalismo;
• Subjetivismo;
• Valorização de temas vinculados ao cotidiano;
• Desapego a obras clássicas;
• Linguagem fragmentada mais popular e coloquial;
• Liberdade de criação estética.
Poema parnasiano:
PROFISSÃO DE FÉ
(...)
E horas nem conto passo, mudo,
O olhar atento,
A trabalhar, longe de tudo
O pensamento.
Porque o escrever - tanta perícia,
Tanta requer,
Que ofício tal... nem há notícia
De outro qualquer.
Assim procedo. Minha pena
Segue esta norma,
Por te servir, Deusa serena,
Serena Forma!
(...)
(Olavo Bilac)
Este poema busca alcança o ideal da poesia parnasiana: a perfeição formal. O último verso busca cultuar este ideal a partir da ideia de arte ou da produção artística como a maior coroação do fazer poético, o alcance da arte pela forma.
Poema modernista:
PRONOMINAIS
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.
(Oswald de Andrade)
Poema da primeira fase do modernismo que tem como objetivo fazer certa aproximação entre a linguagem falada e a escrita ao passo que busca romper com as barreiras puristas do passadismo acadêmico.
Cronologicamente, o modernismo costuma ser dividido em três fases. A primeira (1922 – 1930) foi o período mais radical desse movimento no que diz respeito ao estabelecimento de uma nova concepção literária e consequentemente o rompimento com paradigmas tradicionais, já explicitados aqui. Certamente, foi o período mais difícil e um dos mais promissores de nossas letras. Isso porque literatura passou rapidamente a ser tema requisitado por um número cada vez maior de pessoas. Os autores que mais se destacaram foram: Mário de Andrada, Oswaldo de Andrade, Manuel Bandeira e Alcântara Machado. Em “O movimento modernista”, Mário de Andrade resume o que foi o ano de 1922: “O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e técnicas consequentes, foi uma revolução contra o que era a inteligência nacional. (...) o que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional”.
Segunda fase (1930 – 1945) conhecida também como Geração de 30. O modernismo estava praticamente consolidado e galgava já certa maturidade literária. Neste período, surgiram inúmeras obras de relevância histórica tanto no que diz respeito aos romances regionalistas abordando profundos problemas sociais, quanto na poesia que dava força ao movimento e caracterizava os sujeitos na sua forma mais natural e cotidiana. Tudo passou a ser objeto de inspiração ou manifestação poética. E é exatamente nessa fase que aparece nosso poeta mineiro. Os autores de mais destaques são: Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz.
Terceira fase (1945 – 1960), também conhecida como Geração de 45. Alguns pesquisadores consideram como Pós-Modernismo. Certamente é a fase de maior liberdade literária. Muitos autores desse período se desvencilham de ideais da primeira geração modernista na medida em que não buscam explorar de forma mais tão enfática a realidade brasileira e a linguagem popular. Sobre o poema houve uma tendência de retorno à forma permitindo a retomada da abordagem da poesia como a arte da palavra. Os autores de mais destaques são: Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Mário Quintana, João Cabral de Melo Neto, Lygia Fagundes Telles, Ariano Suassuna.
Após realizarmos esta abordagem, podemos perceber que somente uma parte da pergunta feita anteriormente foi respondida. A saber: como podemos conceituar o que seja modernismo enquanto movimento literário e como podemos enquadrar Drummond dentro deste movimento? Como a primeira parte foi respondida, resta-nos entender agora como Drummond se inseriu definitivamente neste movimento literário.
Em 1930, Drummond publica seu primeiro livro intitulado “Alguma Poesia” e com ele marca sua estreia na nova poesia brasileira. Acontece que esta publicação veio a lume no período que acertadamente é considerado como a segunda fase do modernismo. No que diz respeito à prosa, foram produzidos muitos romances regionais, e a poética consolidou o gosto pelo verso livre e pela abordagem do cotidiano através da linguagem coloquial.
O livro “Alguma Poesia” é marcado por temas como sentimento de inquietação do indivíduo com relação ao mundo e explora o uso de ironias alternando-se com um preciso senso de humor. Outro traço modernista desse livro pode ser observado pelo uso do verso livre e da linguagem coloquial. É nesta obra que figura talvez o poema mais radical da poesia moderna e (talvez) brasileira:
NO MEIO DO CAMINHO
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(Carlos Drummond)
Se o leitor se atentar bem, irá perceber que no início desse texto, ainda no primeiro parágrafo, eu havia me referido ao fato de que não poderemos compreender a obra de um autor sem nos atentarmos para o contexto que ela está inserida. O que deve nos nortear, portanto, é o fato de que o processo de interpretação, que envolve algo mais que o autor e sua obra, se dá exatamente nesse contexto. A exemplo disso, podemos citar o próprio poema de Drummond “No meio do caminho”. Na frente dele paramos mudos e aflitos diante de uma impossibilidade, a impossibilidade da interpretação e do julgamento literário profundo. Em outras palavras, este é um poema que só pode ser interpretado se levarmos em consideração o contexto literário e histórico em que ele foi escrito.
Proponho analisarmos as palavras do próprio autor:
“Este poema ‘pedra no caminho’ que ficou um tanto conhecido, realmente despertou certo movimento, não digo de indignação, mas de irritação porque ele é tão simples, tão barato por assim dizer, as palavras eram tão poucas que as pessoas diziam: mas como pode isso ser um poema, poema tem que ser complicado, tem que ter adjetivos brilhantes, frases inteligentes e notas eruditas. E o meu poema não tinha nada. Exatamente, minha intenção era essa. A de fazer um poema com o mínimo de palavras bem repetidas, bem massacrantes, bem chato...” (Drummond em entrevista veiculada na TV Brasil).
ISBN | 978-85-924126-6-1 |
Número de páginas | 120 |
Edição | 1 (2018) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura c/ orelha |
Coloração | Preto e branco |
Tipo de papel | Offset 75g |
Idioma | Português |
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