Um conto do estrangeiro
Hoje, o pai morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telefonema de um parente distante que vivia mais perto dele do que eu: “Seu pai falecido: Enterro amanhã. Meus sentimentos, primo. Estou muito triste por você”.
Isto não tem importância, saber se morreu ontem ou se foi hoje, fato é que ele morreu, e isso sim é caso relevante, pois agora tenho que largar meus afazeres para lhe prestar a última homenagem. Se bem que a cidade onde meu pai morava fica dois dias de trem de onde moro, e por mais que me esforce, não chegarei a tempo para o enterro. Além do mais, terei que pedir licença no meu emprego para me ausentar por uns cinco dias ou mais, tempo suficiente para ver meus parentes e conversar sobre as últimas palavras e desejos de meu pai. Já faz alguns anos que me afastei da minha parentela, nunca mais falei com meus pais, se não me engano deve fazer uns quinze anos que não trocamos palavras, foi justamente a partir da morte de minha mãe que eu me afastei de todos aqueles que, de alguma forma, me fariam lembrar-me de como morreu minha mãe.
Irei rever minha cidade, parentes, primos e primas, uma multidão de pessoas que não faz mais parte da minha vida, alguns eu nunca vi de perto, são muitos anos de exílio, depois não sei se terão alguma consideração por mim, visto que eu nunca demonstrei ter por eles qualquer sentimento de apreço ou de desprezo, parentes são necessários, mas nunca imprescindíveis.
Meu chefe no banco foi até sensível ao meu luto, liberou-me por duas semanas. Disse que eu devia descansar um pouco para voltar ao trabalho mais revigorado, consolou-me, apertando minha mão, disse-me:
“Meu caro funcionário, a morte é uma coisa muito triste, ainda mais quando somos pegos de surpresa, ainda mais quando se trata de pessoa próxima como um pai ou uma mãe, ou irmão.”.
Agradeci a gentileza do meu chefe e segui viagem, desejava pegar o trem às 10 da manhã. A estação fica perto do banco, cidade pequena tem essa vantagem, todas as coisas importantes estão sempre interligadas de alguma forma, era só atravessar a rua e andar uns dois quarteirões que logo se via a estação e logo abaixo, a cerca de quinhentos metros o mar, pena que não existia transporte marítimo para onde se desejava ir. Minha cidade fica à distância de 300 quilômetros, 48 horas de trem do ponto em que me encontro agora, diante do mar, à espera do trem que me levará a minha antiga cidade, ao lugar em que nasci e vi morrer minha mãe, e agora soube da morte do meu pai, em circunstâncias parecidas.
Do lado da estação tem um pequeno restaurante onde costumo ir, sempre sozinho e, vez por outra, como por lá, e em outras ocasiões também bebo vinho, mas na verdade não gosto muito da comida, exceto de uma mocinha morena que nos atende, ela tem belos dentes brancos, e um sorriso encantador. Se ela não fosse tão jovem, eu a convidaria para um passeio na praia. Talvez na volta, depois que enterrarem o meu pai, eu tenha coragem para lhe fazer o convite, isto se ela estiver ainda disponível. Minha mãe sempre me dizia, que a solidão não seria boa coisa para um homem de família, e que eu devia casar-me logo, enquanto a velhice e as doenças não chegassem, afinal quem iria cuidar de mim nas épocas difíceis? Ela tinha razão, já estou ficando velho, sozinho e rabugento, darei um jeito de não morrer só, ei de encontrar alguém para dividir comigo as lamúrias da vida e da morte.
O trem atrasou, como de costume, então eu resolvi almoçar, e olhar mais uma vez para os dentes da atendente do restaurante. Ela estava com o mesmo sorriso, desta vez também olhei mais detalhadamente o seu corpo, ela é realmente uma bela mulher, e não devia ser assim tão nova quanto me parecia. Contudo, não tive coragem de lhe dirigir palavras de cunho íntimo, não disse nada além de que ia viajar, isto porque ela estranhou eu almoçar em hora imprópria, foi só por isso que fiz questão de lhe dizer.
“Estou indo à minha cidade de origem, enterrar meu pai.”. Ela consentiu com a cabeça, mas não me deu nem uma demonstração de piedade sobre meu infortúnio. Apenas me disse. “Desejo que faça boa viagem.”.
Ao fim de suas palavras, tocou o apito do trem, eu me levantei atordoado, olhei mais uma vez para a moça dos dentes brancos, que já recebia a conta da mesa ao lado, e acenei para ela com a mão, mas ela não percebeu ou não quis me dar atenção.
Paguei meu bilhete ao inspetor do trem, e busquei meu assento no corredor, não havia mais vaga na janela, então tive que viajar de segunda classe. Sentada ao meu lado, havia uma senhora com uma criança de peito ao colo, de meia em meia hora ela dava (de) mamar para a criança, que chorava como quem morria de fome, a criança devia ter já seus dois anos de idade.
Sem que eu lhe perguntasse alguma coisa, a senhora de meia idade, que dava (de) mamar para a criança, me perguntou:
“O senhor vai para a mesma cidade que eu vou? ”.
Respondi secamente:
“Creio que não, minha senhora. Meu destino é a última estação, pois a linha do trem dá volta na cidade dos meus pais, não segue em frente, à frente só há montanhas e mar, e eu pretendo voltar logo, pois não gosto muito da cidade em que nasci. Depois não estou em viagem de férias, estou indo enterrar meu pai.”.
“Lamento muito, afinal, pai só existe um. ” Disse-me a mulher desconhecida, com uma empatia natural que só é comum às almas que temem a morte. Eu pessoalmente não a temo, penso que em todos os casos, morrer é melhor do que estar vivo, mortos não causam danos nem prazer a ninguém, logo estão isentos de qualquer tipo de culpa neste mundo e em outro, se por ventura existir.
Eu não estava tão incomodado com o fato de meu pai ter morrido. Já era esperado esse desfecho natural, meu pai vegetava em cima de uma cama já por mais de dez anos, e a morte para ele e para quem cuidasse da sua doença, deve ter sido um grande alívio, não era fato para se lamentar, afinal ele havia morrido no dia em que ficou acamado, no dia em que fora vítima de um grave acidente cerebral.
Quando chegou a noite, eu já exausto da viagem, mal-acomodado e com aquela mulher malcheirosa, e uma criança chorando aos meus ouvidos, pedia a Deus que ela logo chegasse ao seu destino, pois eu devia continuar o meu com mais tranquilidade e sossego. Não sei por qual milagre, talvez por cansaço extremo, acabei pegando no sono, e quando dei por mim já era de manhã, não havia mais mulher nem criança ao meu lado, agora poderia esticar as minhas pernas, também metade dos passageiros havia ficado para trás. E eu ainda tinha um dia pela frente, mais 24 horas de viagem até chegar ao meu destino.
Logo que o trem partiu eu percebi que estava muito próximo o momento em que eu iria enfrentar uma dura realidade, meu pai não vivia mais, eu devia tomar várias medidas como representante legal da família. Havia coisas para serem cuidadas, e decisões para serem tomadas. Meu pai tinha bens, e eu era seu único herdeiro natural, embora nunca houvesse passado por minha cabeça, que numa hora ou outra eu teria de assumir grandes responsabilidades em seu lugar, pois meu velho mesmo em cima de uma cama, mesmo assim ainda era o chefe de sua casa e comandava bem seus empregados para cuidarem de suas terras. E eu, como funcionário público de um banco nunca atentei para futuras mudanças causadas pela morte de meu pai. Enquanto eu pensava em voz alta, fui surpreendido por uma voz:
“Posso sentar aqui ao seu lado, meu filho? ” Claro que pode padre, estou na verdade ocupando as duas cadeiras ilegalmente, pois paguei apenas por uma, mas fique à vontade.
“Creio que estamos indo para um mesmo destino, estou certo? ” Perguntou-me o padre com um riso entre os dentes. Talvez por saber que não havia outras cidades até a última estação para onde íamos. Respondi: Claro padre, a não ser que tenha surgido outra cidade e outra estação, entre aqui e Niquelândia, cidade para onde vou enterrar meu pai. O padre me fitou com um olhar de espanto e descrença, e balançando a cabeça, disse-me: “Realmente, de fato estamos indo ao mesmo destino, estou indo assumir a paróquia de Niquelândia, pois faz uma semana que faleceu o antigo padre, eu sou seu substituto. Mas, conte-me, de que morreu seu pai? ” Não sei exatamente, vivo afastado da família por quase quinze anos, meu pai era doente, pode ter sido consequência da sua enfermidade, mas confesso que desconheço os fatos, contudo, logo terei as informações corretas sobre seu óbito.
O padre se escorou na cadeira, esticou as pernas, um tanto grandes, pôs a mão direita no bolso do paletó preto, que não parecia batina ou um hábito religioso, puxou um maço de cigarro, em seguida riscou um fósforo para acender um cigarro, puxou duas baforadas de fumaça e atirou no ar, sem se importar com as pessoas que viajavam no mesmo trem, e sobre mim, parecia que ele estava viajando sozinho. Então lhe perguntei:
“O senhor não tem o mínimo respeito com quem viaja ao seu lado? ”.
“Meu senhor, respeito nada tem a ver com vício, fumo desde criança, na minha região todo mundo fuma para espantar os mosquitos, e quando alguém se esquece de acender seu cigarro ou o seu cachimbo, é picado por mosquitos infectados. Algumas pessoas depois que se tornaram protestantes largaram o tabaco, muitos morreram por contaminação da picada dos mosquitos. Então meu caro, não me queira mal, é apenas um modo de vida das pessoas do Norte, portanto na minha região, quem não fuma ou é crente ou é estúpido. Além do mais, não sei bem de quem são estas palavras, de que aquilo que faz mal ao homem é o que sai da boca, no meu caso o que sai da minha boca, neste caso, fumaça, só pode fazer mal aos mosquitos, e talvez às pessoas do Sul, onde a temperatura não permite a proliferação dos mosquitos.”.
ISBN | 978-85-906457-0-2 |
Número de páginas | 256 |
Edição | 1 (2018) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura c/ orelha |
Coloração | Preto e branco |
Tipo de papel | Offset 75g |
Idioma | Português |
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